terça-feira, 20 de julho de 2010

O Lado Bom da DEPRESSÃO (revista Galileu, Maio 2010)

Ela não pode ser diagnosticada por exames de sangue, detectada em chapas de raios-x ou investigada em testes de resistência física. Mas, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, será, em duas décadas, a doença mais comum do mundo. Saiba por que pesquisas recentes apontam que essa pode ser uma boa notícia para todos nós.

   A depressão tem seu lado bom e que dela podemos tirar proveito se percebermos seu potencial transformador.
  É o que defendem dois pesquisadores  evolucionistas norte-americanos, em um estudo recente publicado no periódico Psychological Review no qual tentam desvendar o que chama de " o paradoxo da depressão". Guiados pela teoria da seleção natural de Charles Darwin (1809-1882), o psiquiatra J. Anderson Thomson, da University of Virginia, e o psicólogo Paul W. Andrews, da Virginia Commonwealth university, passaram anos tentando entender por que doenças mentais como a esquizofrenia afetam apenas 1% a 2% da população mundial, enquanto a depressão já atinge mais de 20%. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde divulgadas em setembro de 2009, essa será, em duas décadas, a doença mais comum do planeta, à frente do câncer. Residiria aí o tal paradoxo: por que uma disfunção tão sofrida também é tão comum?
  Segundo Darwin - ele próprio um notório deprimido, como explicitou em várias cartas ao longo da vida -, as espécies passam por um inexorável processo de adaptação emq ue características mais favoráveis a sua existência acabam sendo passadas de geração a geração. Trata-se de um afinadíssimo mecanismo de seleção e especialização que garante a permanência de traços que nos deixam mais aptos a encarar os obstáculos. Adeptos da psicologia evolucionista acreditam que a seleção natural não envolve apenas o corpo. As características da mente humana também seriam o resultado de uma longa jornada de depuração em nome da sobrevivência e reprodução.
  Se a teoria de Darwin é amplamente aceita até hoje no meio científico, argumentam Thomson e Andrews, então a depressão não pode ficar de fora. Em outras palavras, a depressão seria uma adaptação humana que chegou até nós com tamanha incidência não por acidente, mas porque precisamos dela como indivíduos.
  De acordo com essa perspectiva, a depressão nada mais é do que uma resposta radical da mente para que encaremos nossos dilemas mais profundos. "Como a dor física, ela serve para sinalizar que existe um problema a ser resolvido", afirma Thomson. "Seria maravilhoso se a gente não tivesse de sentir dor. Só que não é assim. A depressão, como a dor, é um mal necessário". Esse mecanismo seria tão poderoso que nos faria parar e olhar na marra para dentro de nós mesmos, ainda que de forma muitas vezes ca[ótica, nem sempre consciente e invariavelmente sofrida. Tamanha concentração da mente tem um preço, exigindo muitas vezes terríveis sacrifícios. Por causa dela, alguns param de comer, de trabalhar, de ver os amigos e de sentir prazer.
  Integrante da mesma corrente de pesquisa que tenta mostrar que a doença não é apenas uma disfunção qualquer, Edward hagen, psicólogo evolucionista da Washington State University, costuma compará-la a uma greve geral. "Por que os tabalhadores entram em greve? Porque não estão satisfeitos. acontece o mesmo com nossa mente. Trata-se de um ultimato, um pedido de socorro para que mudemos o que está nos prejudicando".
 


RUMINAÇÃO POSITIVA
  Ao estudar as raízes evolucionistas da depressão, Andrews e Thomson focaram-se num tipo de pensamento que costuma ser comum em portadores da doença, chamado de ruminação. O nome deriva do hábito que as vacas têm de continuar mastigando por horas alimentos que já tinham engolido e voltaram do estômago. "O pensamento ruminante faz com que a pessoa pense continuamente em seus problemas", diz a psicóloga Susan Nolen-Hoeksema, da Universidade de Yale. Até recentemente, havia um consenso científico de que a ruminação não passava de um tipo inútil e improdutivo de pessimismo. A própria professora defende, em parte, essa ideia: "Em alguns casos a ruminação analítica leva o doente a remoer seus problemas de forma tão passiva e repetitiva que acaba ficando ainda mais deprimido".
  Uma ala da psicologia evolucionista passou recentemente a ver a questão sob um prisma bem diferente. Andrews e Thomson acreditam que a ruminação envolve afiados processos analíticos, que, se bem orientados, de preferência com a ajuda de especialistas, podem ser produtivos, ainda que dolorosos. Por meio da ruminação, pessoas deprimidas tendem a quebrar um problema complexo em questões menores, com as quais é mais fácil de lidar. "Isso leva a melhores chandes de resolvê-los", diz Andrews. Estudos apontam ainda que a depressão aumenta a atividade cerebral de uma área do córtex pré-frontal importante para manter a atenção. Isso contribuiria para a mente permanecer mais focada em um problema, minimizando distrações. No processo, o doente pode ter insights sobre sua vida que não seriam possíveis se estivesse são.

 PATOLOGIZAÇÃO DA TRISTEZA

  A depressão, ou melancolia, como era citada no passado, atinge muita gente faz milênios - há menções a ela que remontam aos tempos de Aristóteles, no século 4 a.C. Mas só recentemente passou-se a aventar que a doença tenha aspectos positivos. Novos estudos tentam jogar luz ao tema, como o recém-lançado livro Manufacturing Depression: The Secret History of a Modern Disease (Fabricando a Depressão: a História Secreta de uma Doença Moderna, sem tradução no Brasil). Nele, o psicoterapeuta gary Greenberg, que também sofre de depressão, faz um relato franco do que classifica de patologização da melancolia. A partir do século 20, tristeza profunda passou a ser tachada de doença grave. Virou tema de pesquisas científicas, ganhou vocábulos cada vez mais extensos em livros de medicina e psicologia e, a partir dos anos de 1950, transformou-se em mal a ser combatido por remédios. Co-autor de The Loss of Sadness: How Psychiatry Transformed Normal Sorrow into Depressive Disorder (A Perda da Tristeza: Como a Psiquiatria Transformou Tristeza Normal em Disfunção Depressiva, inédito no País, outro interessante livro sobre o assunto, Allan Horwitz defende que isso acontece porque a psiquiatria contemporânea tende a deslocar os sintomas de seu contexto, classificando de disfunções mentais reações normais que temos diante de situações de estresse. Isso, segundo ele, tem sérias implicações não só para a medicina, mas para a sociedade em geral. "Diante dessa indústria da felicidade, que alardeia ser possível sentir-se bem o tempo todo, a gente se torna incapaz de ver a tristeza como parte natural da vida", diz. "Isso leva pessoas que estão apenas tristes ou que têm quadros mais leves de depressão a buscar saídas rápidas para sua dor por meio de antidepressivos".
   Horwitz salienta, no entanto, que é preciso separar reações depressivas, que são respostas normais a situações difícies, dos transtornos graves de depressão. "Quadros complicados, como depressão bipolar, precisam, claro, ser tratados com cuidado especial, muitas vezes de forma multidisciplinar, combinando medicamentos e terapias". A própria pesquisa de Andrews e Thomson focou-se em tipos leves e moderados da doença - gente que, na opinião dos dois pesquisadores, acaba tomando antidepressivos sem necessidade, perdendo a chance de refletir sobre sua existência e tomar decisões que poderiam ser de grande valia. Culpa, segundo eles, da banalização no uso desses medicamentos.
   No Brasil, os antidepressivos jã são a quarta classe de remédios mais comercializada - atrás de anti-inflamatórios, analgésicos e contraceptivos. Em cinco anos, segundo levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a venda desse tipo de medicamento cresceu 48%. Pulou de 17 milhões de unidades vendidas em 2003 para 25,9 milhões em 2008. "Hoje antidepressivos são prescritos por médicos de todas as especialidades, mesmo quando não têm certeza do diagnóstico", diz Luiz Alberto Hetem, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). "No entanto, há casos de depressão mais graves em que os antidepressivos são imprescindíveis. Já em situações leves, o acompanhamento psicológico é, muitas vezes, suficiente para que a pessoa se restabeleça", diz. É importante salientar que distinguir um quadro grande de um leve ou moderado não é tarefa fácil. Cada caso precisa ser avaliado individualmente por especialistas na área.
   Defender que depressão tem seu lado bom não significa dizer que seus portadores não precisam de tratamento. Muito menos que devam sofrer indefinidamente à espera de supostos benefícios da doença. Afinal, aí reside outro grande paradoxo da evolução: mesmo quando temos consciência de que a dor pode ser útil, a urgência em escapar dela é um de nossos mais emblemáticos instintos. Remédios, psicanálise, psicologia, cada um deve procurar o tratamento que julgar melhor para aliviar o sofrimento. Mas as recentes teorias sobre depressão trazem uma inovação preciosa ao nos mostrar que a tristeza e o pessimismo podem não ser de todo ruim, ajudando-nos a compreender nossas reações humanas de uma maneira mais natural. E a entender melhor aquele velho ditado que diz, sabiamente, que há males que vêm para bem.

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